segunda-feira, 6 de agosto de 2007

O CANTEIRO UNIVERSAL DE CECÍLIA MEIRELES

por Enzo Carlo Barrocco
A poeta, cronista e jornalista fluminense Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Rio de Janeiro 1901 - Idem 1964), foi educada pela avó materna, visto que ficou órfã muito cedo. Foi diplomada como professora pelo Instituto de Educação do Rio de Janeiro em 1917. Como educadora participou do movimento de renovação do sistema educacional brasileiro. Em 1934, Cecília fundou a primeira biblioteca infantil do Brasil. Lecionou, também, literatura luso-brasileira na Universidade do Rio de janeiro, à época Distrito Federal, entre 1936 e 1938. Em 1940, ensinou na Universidade do Texas, Estados Unidos. Cecília começou a sua vida literária em 1919, com o lançamento do seu primeiro livro. Passou pelo neoparnasianismo e pelo simbolismo e chegou a ser atraída em, 1922, pela revolução modernista, mas não chegou a pertencer efetivamente a esse grupo, mantendo a independência que sempre a caracterizou. O seu livro "Viagem", lançado em 1939 foi premiado pela Academia Brasileira de Letras. Intimismo, lirismo, misticismo e universalidade são as principais características da obra de Cecília Meireles. Sua contribuição à poesia brasileira se deu com os livros: Espectros, de 1919; Nunca Mais e Poema dos Poemas, de 1923; Baladas Para El Rei, de 1925; Viagem, de 1939; Vaga Música, de 1942; Mar Absoluto, de 1945; Retrato Natural, de 1949; Amor em Leonoreta, de 1952; O Aeronauta, de 1952; Romanceiro da Inconfidência, de 1953; Pequeno Oratório de Santa Clara, de 1955; Pistóia, de 1955; Canções, de 1956; Romance de Santa Cecília, de 1957; A Rosa, de 1957; Metal Rosicler, de 1960; Poemas Escritos na Índia, de 1962; Salombra, de 1964; Ou Isto ou Aquilo, de 1964. Alguns poemas de Cecília foram musicados e se transformaram em belas músicas da MPB, inclusive os belíssimos poemas “Canteiros” e “Noturno”, musicados pelo cantor e compositor cearense Raimundo Fagner (Fortaleza 1949). Moderna sem tocar no Modernismo, imortal sem ter se preocupado com a imortalidade, Cecília é, ao meu ver, a mais profícua poeta brasileira de todos os tempos. Imensa e intemporal a belíssima poeta brilhará eternamente no céu de nossa literatura. Fiquemos, portanto, com três raríssimas jóias produzidas pelo vasto universo da mente de Cecília.
DESTINO
Pastora de nuvens, fui posta a serviço
por uma campina desamparada
que não principia e também não termina,
onde nunca é noite e nunca madrugada.
(Pastores da terra, vós tendes sossego,
que olhais para o sol e encontrais direção.
Sabeis quando é tarde, sabeis quando é cedo.
Eu, não.)
Pastora de nuvens, por muito que espere,
não há quem me explique meu vário rebanho.
Perdida atrás dele na planície aérea,
não sei se o conduzo, não sei se o acompanho.
(Pastores da terra, que saltais abismos,
nunca entendereis a minha condição.
Pensais que há firmezas, pensais que há limites.
Eu, não.)
Pastora de nuvens, cada luz colore
meu canto e meu gado de tintas diversas.
Por todos os lados o vento revolve
os velos instáveis das reses dispersas.
(Pastores da terra, de certeiros olhos,
como é tão serena a vossa ocupação!
Tendes sempre o indício da sombra que foge...
Eu, não.)
Pastora de nuvens, esqueceu-me o rosto
do dono das reses, do dono do prado.
E às vezes parece que dizem meu nome,
que me andam seguindo, não sei por que lado.
(Pastores da terra, que vedes pessoas
sem serem apenas de imaginação,
podeis encontrar-vos, falar tanta coisa!
Eu, não)

Pastora de nuvens, com a face deserta,
sigo atrás de formas com feitios falsos,
queimando vigílias na planície eterna
que gira debaixo dos meus pés descalços.
(Pastores da terra, tereis um salário,
e andará por bailes vosso coração.
Dormireis um dia como pedras suaves.
Eu, não.)

CANÇÃO DA ALTA NOITE

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.
Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.
Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.
Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo
na noite, também perdida.
Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.
Andar... - enquanto consente
Deus que a noite seja andada.
Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.
TIMIDEZ
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
— mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...
— palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
— que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...
— e um dia me acabarei.

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